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Sobre a “Lei da Mobilidade Urbana”

Felipe Drago, Conselheiro Estadual do IAB/RS e Assessor Técnico do Cidade

A “Lei da Mobilidade” (Lei nº 12.587), sancionada pela Presidência da República em 3 de janeiro de 2012, estabelece as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana e compartilha com o Estatuto da Cidade (que não dispõe sobre mobilidade) o embasamento no artigo 182 da Constituição Federal de 1988. Esta base constitucional comum significa, entre outras coisas, que, mesmo existindo um plano nacional para “instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano” (Art. 21, inciso XX da Constituição), são os municípios que tomam as decisões sobre sua aplicação ou não. Tais decisões são tomadas, na prática a partir de suas conjunturas políticas, econômicas e sociais e, evidentemente, a partir da vontade dos governantes e da pressão popular. Tomar esta decisão a partir da conjuntura também significa que o “como” a lei será aplicada é decidido na arena de forças políticas e econômicas de cada município.



A lei vem de um processo de 17 anos de tramitação, reconstituído pelo Comunicado 128, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), divulgado no dia 06/01/2012, três dias após a sanção da lei. Segundo o Comunicado, a aprovação constitui um importante marco na gestão das políticas públicas brasileiras que buscam a “sustentabilidade urbana”. As propostas sobre as quais se desenvolveu a articulação nacional da lei são, em termos gerais: tornar o transporte público eficiente e acessível; diminuir as “externalidades negativas” do uso do automóvel (congestionamento e poluição), responder à carência de investimentos e fontes de financiamento no setor e à fragilidade da gestão pública nos municípios (pág. 3). As diretrizes que organizam a lei estão à pág. 6.

Assim como o Estatuto da Cidade atribuiu aos municípios a obrigatoriedade da elaboração de Planos Diretores, todos os municípios com mais de 20 mil habitantes serão obrigados a elaborar seus Planos de Mobilidade Urbana e ficarão obrigados a divulgar os impactos dos benefícios tarifários que venham a conceder (e sua influência no valor das tarifas).

Conforme matéria no site do IPEA, o instrumento de subsídio (gratuidade) de tarifas, no entanto, não possui normatização, isto é, a lei não estabelece como o valor das passagens do transporte público pode ser reduzido, deixa a cargo do financiamento pelos recursos arrecadados pelas próprias tarifas. A Lei também prevê a mudança do regime de concessões de transporte coletivo e a racionalização do uso dos automóveis, como a restrição e controle de acesso ou circulação em determinados locais e horários.

Na mesma matéria publicada pelo IPEA, seu diretor de Estudos e Políticas do Estado, Alexandre Gomide, declara que “a nova Lei não é contra a posse do automóvel, apenas pretende que o seu uso seja feito de forma sustentável”. Admite, porém, que a lei não é suficiente para garantir a sustentabilidade das cidades. Segundo Alexandre “é necessário engajamento político dos atores sociais e a capacitação do Poder Público, sobretudo do municipal, que terá que adequar e implementar as diretrizes e instrumentos da lei à realidade de suas cidades, para fazer a lei pegar”.
 
Se na ocasião da elaboração do Estatuto da Cidade ainda era possível vislumbrar a Reforma Urbana* , na elaboração da Lei da Mobilidade o tom é mais pragmático. Depois da rica experiência de proposição, tramitação e aprovação do Estatuto e seu completo fracasso operacional, qualquer lei que regule itens básicos da vida na cidade (habitação, transporte, saneamento, etc.) passou encontrar o seguinte impasse: a partir do momento que se elaboram os instrumentos, pergunta-se: são aplicáveis?

Isto ocorre porque os motivos da aplicação não têm sido os mesmos da elaboração dos instrumentos. Os motivos que deram origem à discussão e à necessidade de regulação são colocados de lado por pressões econômicas. Em outras palavras, pensadas para regular e minimizar os efeitos predatórios da mercantilização da cidade, as leis têm “pegado” quando são requisitadas por interesses econômicos minoritários. Em São Paulo, por exemplo, de todos os instrumentos previstos pelo Estatuto, nenhum dos treze em operação ataca o principal problema: a “captura da mais-valia urbana” resultante, principalmente, da produção e da especulação de uma dezena de empresas de atuação nacional.

A idéia original era a destinação “social” do montante “capturado”: utilizar instrumentos de regulação urbana para capturar lucros exorbitantes e colocar estes lucros à disposição dos pobres da cidade, de várias maneiras, já que estes lucros são compostos majoritariamente pelo resultado do trabalho destas pessoas. Mas, na prática, os instrumentos passaram a ser aplicados seletivamente, pois encontraram operacionalidade na ação dos especuladores e empreendedores, não importa se grandes ou pequenos.

Organizado pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre, a cidade presenciou no dia de 05 a 07 de outubro de 2011, uma das mais significativas “comemorações” dos últimos tempos: os 10 anos do Estatuto da Cidade. Neste evento, enquanto os que trabalharam pela concretização da Reforma Urbana argumentaram sobre o fracasso do Estatuto, os empresários comemoraram e reivindicaram a eficácia desta “nova ordem jurídico-urbanística” (até onde ela não os prejudica, é claro), como a aplicação do IPTU progressivo, por exemplo, pois “não há mais terras baratas e bem localizadas disponíveis”. É irônico (e sintomático da genética do Estatuto e dos Planos Diretores) que os mesmos empresários que operam especulando e produzindo a cidade capitalista, reclamem a não aplicação de uma lei originária da contestação desta ideologia.

Além disso, nos últimos anos, o Governo Federal desenvolveu uma política de incentivo à produção e comercialização de automóveis através da redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Fez esta opção, podendo reduzir IPI de bicicletas, roupas, alimentos, remédios, etc. Em alguns casos o fez, mas a redução para a indústria automobilística é, de certa forma, emblemática. Isto tem impacto direto nos municípios, que, agora passam a ser obrigados a tratar a questão “mobilidade” como uma política pública para reduzir os impactos dos automóveis.

Atualmente o “Brasil é o país que mais atrai montadoras**”. Isto só pode ser explicado pelo incentivo governamental e, claro, pelo consumo de carros. Segundo o IAB , com dados do Anuário Estatístico da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores – Brasil (ANFAVEA), “o mais provável é que no mínimo 3,4 milhões de novos veículos sejam despejados nas cidades do país até o final do ano [2011], sendo que a esmagadora maioria destas unidades irá concentrar-se nas cidades grandes e médias”. Ainda no mesmo texto, “a previsão é que o mercado brasileiro consuma 6 milhões de veículos [ao ano] até 2020” sendo que esta indústria é “diretamente responsável por 22,5% do PIB industrial do país”.

Uma lei pode enfrentar tamanhos números no contexto de desenvolvimentismo e pragmatismo atual? Pode enfrentar o imaginário do automóvel? Tendemos a afirmar que não pode. A lei pode vir a melhorar o transporte público pela necessidade de planejamento mais detido (apesar de realizado por empresas de planejadores, o que significa um planejamento privado das ações públicas), assim como possibilitar uma série de ações legais a partir do ministério público ou por iniciativa popular. Mas, assim como o Estatuto da Cidade, que não conseguiu capturar a mais-valia e forneceu instrumentos de negociação dos bens públicos entre especuladores, empreendedores e poderes públicos municipais, a nova lei pode vir a fornecer uma nova leva de instrumentos de barganha entre estes poderes que, em alguns casos (tal como o da PMPA) são a “representação pública de interesses privados”, negociando com a iniciativa privada. Não precisamos nos esforçar para saber quem ganha – e quem perde.

Nestes termos, não somos otimistas com as perspectivas da futura proliferação de Planos de Mobilidade Urbana no país. No Brasil atual, uma lei que garanta o direito ao transporte e a Reforma Urbana, como reivindica a história da lei logo na introdução do Comunicado 128 do IPEA (pág. 3) e, ao mesmo tempo, reduza a utilização do automóvel, levando em conta o cenário, é inviável. A exemplo, é claro, do processo do Estatuto da Cidade e seus Planos Diretores que, grosso modo, prioritariamente ajudam a organizar a especulação ou introduzem “boas práticas” inócuas a qualquer mudança estrutural.

Uma política de “sustentabilidade”, neste contexto, ainda depende da velha política, hoje em baixa nos partidos, nos movimentos, nas universidades, nos governos, nas ruas e nas nossas casas. Só as respostas locais e organizadas a estas políticas de desenvolvimento, até agora regidas pela economia, podem vir a dar algum resultado distinto, ou mesmo fazer a lei “pegar” para o “lado contrário” ao tradicional. Continuam a ser as pessoas, governos e grupos sociais (e suas prioridades) que definem como as cidades se desenvolvem. A vontade política dos homens públicos, dos cidadãos comuns e de suas organizações para com a produção de cidades que apontem para fora da barbárie é o principal determinante de uma virada em que o planejamento urbano volte a ter algum sentido (para alguém), volte a ter um sujeito e deixe de ser operado no âmbito da “livre iniciativa”, que não passa de uma ideologia abstrata que não produz nada de qualidade sem a regulação do Estado.

Portanto, as perspectivas não são boas.

NOTAS:

* A idéia de Reforma Urbana foi vigorosa nos anos 1980, pós-ditadura militar. Hoje perdeu muito de sua capacidade de confronto. No entanto, àquela época, vigorava a idéia de construção, de um país democrático a partir da base, da mobilização e do poder popular. Neste período tiveram origem movimentos sociais que, segundo estudos sociológicos, foram decisivos para o formato democrático assumido pelo Estado brasileiro. Foram tais como o do ABC paulista (e do Partido dos Trabalhadores – PT), Articulação Nacional dos Movimentos Populares e Sindicais (ANAMPOS), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Central dos Movimentos Populares (CMP) e Movimentos dos Trabalhadores Sem Terra (MST), por exemplo. Também deu origem a outros através de discussões e cisões internas destes movimentos, tais como Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), Movimento dos Trabalhadores desempregados (MTD), União Nacional por Moradia Popular (UNMP), Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), entre outros.
** Brasil é o país que mais atrai montadoras. Jornal O Estado de São Paulo, 28 de agosto de 2011, página B1

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